quarta-feira, 5 de julho de 2023

Mariposa

Por tudo o que vejo e julgo saber, não consigo alcançar o fio de memória que lhe descubra a origem.

Senti-a eclodir no instante em que a Luz me amornou o bater compassado do coração, mas talvez sempre tenha feito parte dele. Talvez aquela larva aguardasse apenas o calor daquele Sol para me reclamar o reconhecimento da sua existência, pois em coração e larva senti o toque da Luz. E em coração e larva senti o seu extinguir. E sentí-lhe o frio do negrume e a fome feroz que assomou a larva. Senti a sua loucura. 

O coração descontrolado começou a ser consumido.

Cada cravar de cada dentada foi-me doído no músculo devorado e  foi-me doído no verme que em nada mitigava a insaciabilidade faminta pela Luz desaparecida. Mordidas, rasgões, cortaduras até que já mais nada havia para devorar.

Então, em agonia, confusão e instinto, a larva tornou-se casulo.  A dor cessou. A fome desvaneceu. Ficou somente um monólito de quietude que era aquele casulo a fazer as vezes do coração.

Nada dura. 

Não durou o simples bater compassado do coração. Não durou o calor da Luz. Não duraram as mordidelas vorazes da larva. Não durou a quietude do casulo, interrompida pelo irromper das asas da mariposa.

Por vez de coração tenho uma mariposa, arremessando-se descontrolada contra o meu peito, ainda faminta pela Luz que a arrancou para a existência. Cada palpitar de asas ameaça rasgar-me o peito como casulo, se não me propulso sob a vontade do seu voar. 

Escravo do esvoaçar desgovernado em direção a cada e qualquer chama, a cada e qualquer centelha. Subjugado a estes ímpetos, com ela vou crestando sob fogos, ansiando que surja  o que finalmente a cegue, que de uma vez lhe consuma as asas, deixando-me afogar na escuridão do Sol que há muito se eclipsou.

domingo, 9 de outubro de 2022

 Toda a minha energia era luz detrás os olhos, ávida pelo que estava fora. A luz derramava-se com tudo de mim, mas o que retornava não vinha inteiro. Existia algo no mundo que eu não conseguia ver; havia algo no meu espectro que faltava. 

Virei o olhar adentro e procurei o que era, mas só lhe achei a falta. Se tudo o que tenho é a ausência, como poderia então saber o que não está presente? 

 Escrutinei cada fibra da minha estrutura. Por certo, algo, qualquer coisa que fosse, na sequência lógica do que havia, abriria caminho para imaginar o que não estava! Por eras de longuidão, olhei e olhei, uma e outra vez, olhei. E uma e outra vez, obtive o mesmo: ausência; somente a ausência, além da qual nada conseguia ver.

Olhando com tudo de mim, permaneço não mais que eu. E por mais cheio que o mundo se afigure, não absorverei mais do que há em mim. 

sábado, 12 de agosto de 2017

Peguei num punhado de Areia e atirei-a às engrenagens da minha existência. Menti-me. Disse-me que limaria as arestas que tão carecidas de aperfeiçoamento estão. Sim, disse-me que com a Areia me poliria! Mas cada movimento arranha e por mais que tente...por mais que pense e atente na procura do melhor ângulo, da pressão certa e da exacta rapidez, nunca haverá polir neste arear. O cérebro bloqueia, o coração entope e há somente moer.

Enfeitiçado pela ideia de um oásis, ceguei-me com uma miragem. E mesmo sabendo que acabaria mirrado, consumi-me em quereres sedentos. Mesmo sabendo, enganei-me a não saber.

Peguei noutro punhado de Areia e pulverizei um pouco mais a minha existência.

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

~ O menino olhou para o balão cheio de tão mais que ar, desejando uma última vez que fosse para ele. Riu-se do seu querer e picou o coração para o expurgar da vontade. ~

A esperança não quer ficar; quer partir, quer morrer. Decido largar a corda que a segura. Talvez assim durma eu mais solto.

segunda-feira, 30 de abril de 2012

Inebriado pelo cinzento da madrugada chuvosa, encosto-me a um pilar da velha estação e cerrando as pálpebras, olho o monstro que parece inerte. Levanta-se uma rajada de vento que me fustiga, fazendo retrair-me um pouco no tremor daquele frio que me atinge de repente. Mas sinto algo mais que frio. Sinto que algo me pressiona o peito e tenta fugir de dentro, numa exalação involuntária, quase de prazer. Algo em mim vibra além do tremor, algo que me eriça a pele para além do frio. Sim, há algo em que mim que gosta do vento. Se calhar é verdade o que há muito me vêm dizendo e o Ar é o meu elemento; talvez seja a minha alma a exaltar-se, querendo reunir-se à matéria-prima com que foi moldada.

Embalado pelo sono acumulado de várias noites mal dormidas, imagino o que será ser Ar: sem jamais ser visto, notado apenas quando passa e esquecido quando quer ficar; aceite na suavidade das suas brisas, recebe retrações quando ousa afagos mais intensos. Oh, mas a minha alma já não é livre como o Ar! Ele não se importa de não ser visto! Ele não quer saber se o agraciam ou o repudiam! Ele ri-se de quem o tenta prender e ruge aos que se atravessam no seu caminho! Já eu...eu uivo em desespero surdo para que me vejam, para que me seja permitido ficar, para que me amparem...

Quem sabe um dia, no balanço das voltas da minha mente ensandecida, a minha alma crescerá num tornado e partirá à reconquista da sua liberdade. Pressinto-o próximo - o vento já começou a soprar forte, os muros a dar de si e não tarda a besta cravará as garras no chão para não ser arrastada. Ah, farei com que cedam! Nem que tenha que capturar fogo, terra e água na minha força! Tornado de fogo, tromba de água ou tempestade de areia, recuperarei o que outrora tão meu foi. Não, o que outrora Eu tanto fui!

O comboio que aguardava vocifera lá ao fundo finalmente. Com encontro aqui marcado com a besta que anseio destruir, mas ainda me mantém escravo, tenho que voltar antes do ocaso. As paragens são muitas, por isso correrei como o vento.

sábado, 31 de março de 2012


No centro da pequena sala, um homem sentado, a abraçar as pernas contra a sua face. O homem olha para uma chama que se eleva de um pequeno buraco no centro do chão de granito negro. A chama contorce-se e diminui, devolvendo à pequena sala um pouco do abraço do vazio. O homem aperta-se mais contra si próprio, retraindo-se do frio que se apodera do espaço. Entre tremores pergunta-se quando irá por fim desaparecer aquela desculpa patética de fogo! Há tão pouco era inferno de labaredas na iminência de tudo consumir. Fervia o sangue em deslumbramento, libertava fumos que cegavam os olhos e toldavam a mente. Agora, somente pequena chama de vela, é incapaz sequer de aquecer o frio cortante que regressa e, ainda assim, ameaça queimar quando o desespero por calor levar à aproximação excessiva de um toque. 

Ouve-se um murmúrio do homem “Desaparece. Não me tentes mais. Deixa-me voltar ao meu mundo de torpor e negrume. Serei novamente estátua de gelo.” E a prece termina num tremor, não de frio, mas de medo que o desejo seja atendido.

O homem adormece. A chama morre.

Se haverão lágrimas silenciosas quando o homem acordar ou até mesmo se acordará antes de voltar a ser glaciar humano, não o saberei. Está demasiado escuro para que o consiga ver.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Os dias já se tinham somado e ultrapassado uma semana desde a última caçada bem sucedida. Prostrado sob uma força que se alimentava da que se ia dissipando do seu corpo, o leão jazia imóvel no chão. 
O sussurrar do vento que acariciava o capim seco foi de súbito invadido por um rosnar estranho. O leão reconheceu o som. Era o mesmo que antecedeu a destruição do seu primeiro clã.

A carrinha aproximou-se, parou; o leão ergueu-se, sentou-se. Olhando para o felino era possível ver o seu estado degradado, focar na pele já a colar-se às costelas e na juba rarefeita; ou ver a sua pose serena, orgulhosa, dignificada. Era, no entanto, difícil assimilar o contraste provocado pela existência de ambas as realidades num mesmo instante.

Um homem saiu da carrinha com um esgar a contrair-lhe o rosto e começou a encurtar distância entre os dois. Impassível, o leão observava o homem que com uma das mãos oferecia a cabeça de um carneiro, mas que com a outra segurava uma corrente.